DIÁRIO DE BORDO – ESTAÇÃO JOÃO FELIPE

8h05 – Chego ao centro da cidade. O céu está nublado. Parece que vai cair uma chuvona. Pode ser que a viagem fique mais interessante. Pego meu guarda-chuva e sigo em direção à estação. A manhã está fria, como eu nunca mais tinha sentido. Quando atravesso a rua e olho para o prédio da estação João Felipe, com aquela arquitetura tão diferente da atual, por frações de segundos regresso a um passado que não vivi, mas que meu pai viveu e me contava quando eu era criança. Segundo ele, Fortaleza mais parecia um grande sítio, com muita terra inexplorada e com uma brisa forte que deixava o clima mais ameno que o atual. Naquela época, os homens usavam paletó no dia-a-dia, dá para acreditar? Eita... eu acho que a viagem já começou antes mesmo de chegar à estação.
8h10 – quando pus os pés na estação, senti algo familiar. O piso é parecido com o da varanda da minha antiga casa, onde eu tanto brinquei e vivi uma infância muito feliz. Eu acho que a palavra de hoje é saudade. Está difícil conter a lágrima que quer cair.

Agora tem um trem chegando. Engraçado... quando criança, eu achava que o trem fazia “tic-tac-tic-tac-piuiiiii”. Mas o barulho de verdade é outro. Acho que prefiro o da minha lembrança criativa.
Encontrei um painel lindo. Mostra a trajetória do surgimento da ferrovia com base no trabalho escravo. Também mostra a época em que o trem era transporte de elite e a contribuição das estradas de ferro para o desenvolvimento da economia. É uma pena que esse painel fique em um lugar isolado. Hoje em dia o tempo das pessoas é tão curto que acho que poucos percebem a existência dele ali.
8h25 – decidi escrever este diário de bordo. A partir de agora os relatos serão descritos em tempo real. Será que vai valer à pena? Se você gostou do que leu até agora, continue. Caso contrário, eu me despeço de você por aqui!
8h40 – Lembra da minha dupla? Voltou a me ligar dizendo que se eu quisesse, poderia ir sozinho que ela iria depois. Nem deu raiva dessa vez! Acho que o tempo está sendo proveitoso... pelo menos para mim, não sei para você. Mas já que continuou a leitura... vamos nessa que a viagem está apenas começando.
9h – Eita! Esse povo não chega! Vou já comprar meu bilhete. Não vai ser ruim viajar sozinho. Por falar em sozinho, estou sentado bem no meio de um banco, no centro da estação. Parece que ninguém senta aqui. Todo mundo só passa... quantas histórias já passaram e não ficaram? Quantas ainda estão por vir? Pela primeira vez alguém pára para observar aquele painel que eu falei. Braço cruzado... deu uma olhadinha e foi embora. Será que ele captou a mensagem ou foi só mais um dos desenhos que os artistas “que não têm o que fazer”, fazem? Não vou perguntar. Prefiro crer na primeira alternativa. Vou lá comprar meu bilhete, senão não saio daqui. Licença, viu?
9h15 – Aê!!!! Elas chegaram! Vamos embarcar!

Um pouco antes da primeira parada, tinha uma moça sentada a nossa frente. Aparentava ter uns 25 anos. Batom forte na boca e um olhar fixo nas minhas “companheiras de aventuras”. Um olhar de encantamento para cada detalhe da roupa. Nas brincadeiras ela sorria junto. Acho que ela percebeu meu interesse no seu olhar. Mas a estação dela chegou. Lá se vai mais uma história de vida fugindo pela porta quebrada. O nome dela? Eu nem sei... também, não perguntei, né?! É melhor assim!


A Raquel está promovendo um verdadeiro show de humor nesse vagão. Ninguém pára de rir. Na nossa frente estão a Michele e a Ermínia, que são mãe e filha. Perguntaram se nós somos turistas... já pensou nisso? Ao meu lado está a Sandra. Cheia de sacolas... trabalha vendendo várias coisas, lá em frente a Aço Cearense do Genibaú. Ela começou a viagem com um olhar triste. Agora sorri com o “parafuso solto” da Raquel, como ela falou.
10h – Tem cara nova no trem. O que antes era vagão de trabalhador, agora está com uma carinha mais de gente aposentada. Rostos cansados de quem já deu muito duro na vida e ainda continua na batalha.
Agora não é mais o Ítalo quem olha pela porta. Tem outro rapaz. Mas dessa vez não vou dar palpite no pensamento dele. Da última vez, me lasquei!
Conversando com o Ítalo, descobri o motivo das grades nas janelas. O povo joga pedra no trem. Que triste, né?! Se não bastasse a falta de conservação, o povo ainda maltrata o pouco que resta!


10h43 – Depois de mais uma estação, temos menos companheiros. Ao meu lado, no lugar da Sandra, um rapaz estuda inglês. Na minha frente está uma moça... nova ainda, aparenta seus 20 e poucos anos, mas com cara de sofrida. Ela usa cadeira de rodas. Os joelhos sujos e feridos denunciam como ela deve se locomover em casa. Ela está com duas acompanhantes. As três parecem ser irmãs. Engraçado... o olhar delas também ficou boa parte do tempo para as meninas. Mas agora, o olhar da mais nova está voltado para mim. Deve estar se perguntando: “o que esse doido tanto escreve”? Lá vou eu com meus “achismos” que quase nunca dão certo.
E eis que entro na quarta folha da minha agenda. Nunca escrevi tanto, nem na época da caligrafia. Acho que é por isso que minha letra é tão feiosa assim.
Que sensação estranha de ser observado. Parece que estão dando o troco! Dá vontade de dizer: “Hey! Olha para lá que sou eu quem tem que te observar”. Ainda bem que elas não anotam nada. Não vou correr o risco de ter um pedaço da minha vida contado por outro alguém em um blog... no máximo chega a uma conversa de amigas e olhe lá. Acho que ver uma pessoa escrevendo feito louco num trem chacoalhante não gera pauta nem pra mais besta das conversas!
10h55 – olho pela janela pela última vez. Vejo as cruzes do São João Batista, cemitério que fica próximo à nossa estação de partida e chegada. Está dando um aperto no peito. A moça da cadeira de rodas sorriu pra mim. Por que será? Como deve estar minha cara? Não sei! Só sei que por dentro, a vontade é de continuar.
Todos se levantam. O trem pára. Poxa... uma multidão saindo do trem. Tinha bem mais gente do que eu imaginava. O Ítalo se despediu e se perdeu no meio do povo. Nós ficamos aqui na plataforma, parados. Comentando o que passou e o que ficou, enquanto que o trem parte para uma nova jornada de encontros e desencontros da vida. É hora de fechar meu caderninho... as meninas estavam falando comigo feito doidas e pararam para eu terminar de escrever... as palavras cessam... mas a imaginação continua... até um dia... quem sabe? Nos encontrarmos todos outra vez! Foi bom pra você? Foi muito bom pra mim!